Lar. A casa-lar possível em certas circunstâncias

A adiar a visita, sem outra desculpa que não fosse a falta de transporte. Está em Caneças, num Lar. Deve de ser um dos poucos residentes, conscientes de onde está. É o meu primo Zé Maria. Fará este ano 91.
Fomos no dia de Carnaval. Não é tarde nem é cedo. O Governo não tirou a tolerância de ponto e Marido ficou disponível. Estava a chover. Ir onde? Visitar o primo Zé. E fomos. Levei comigo «o nariz de palhaço» para ver se o alegrava um pouco e uns pastelinhos de nata que o fazem dar estalos com a língua, tanto que gosta deles. Chovia imenso em Caneças. Com a sua filha como cicerone - vai em frente, corta à esquerda, e agora sobe aí - parámos em frente ao edifício. Entrámos. Uma lufada quente invadiu-me. O ambiente costumeiro de um Lar de gente idosa. Sem cheiros, que é coisa que logo me aflige. Todos sentadinhos, agasalhados num ambiente aquecido, espalhados em perímetro quadrado por duas grandes salas, com a televisão acesa em som de fundo e de companhia. Móveis clarinhos, paredes brancas, alguns quadros. Bons dias e sorrisos da minha, da nossa parte que não foram entendidos. Algumas cabeças ergueram-se, alguns olhares a procurar reconhecer se era para eles a visita mas que logo baixavam à posição inicial. Nem um som.
Fiquei a matutar se não haveria outra maneira de comunicar com eles, algo que os fizesse «acordar», mesmo sendo só de passagem. O meu primo Zé não está assim, felizmente para ele e para todos os que o visitam na sua nova residência, no seu Lar.
Subimos ao 1º andar, num elevador. É lá que costuma ficar, disse a filha, enquanto não é a hora do almoço ele não desce. Pus o nariz vermelho. A filha e Marido olharam-me, abanaram a cabeça e deram-me a modos de um sorriso amarelo. Feitios.
É uma sensação estranha, que se entranha, não agradável, entrar num Lar de idosos. Imaginamos o nosso futuro. E não foi uma boa sensação o que senti.
Encaminhá-mo-nos pelo corredor em direcção a uma sala e lá vinha o primo Zé, agarrado à sua canadiana. Especou-se. Olhou-nos e pela expressão a modos que pensava que uma conheço mas a outra ... quem é aquela?! Depois reconheceu-nos quando viu Marido.
Primeira frase após o beijinho e o xi-coração: Já viste onde é que eu estou? Não tive resposta. Só sorri e fiz uma festa na sua cara. Sentá-mo-nos a uma mesa. Olhei à volta. Na sala estavam três senhoras sentadas. Uma dormia, encaixada em almofadas. Outra, de boca escancarada, olhos muito abertos e fixos, de vez em quando soltava uns sons altos, agudos, que o incomodavam. Talvez fosse isso ou não mas deu-me a impressão de querer meter conversa... a outra, estava ao lado desta, pareceu-me ser a sua companhia e companheira. Foi a que me pareceu estar mais viva. Não há palavras para descrever o que senti enquanto lá estivemos, apenas uma meia horita, mas senti como se fosse uma hora bem grande, a tentar disfarçar, a contar coisas. Punha nariz, tirava nariz, distraí-o e distrai-me conforme soube e pude. Clicámos o momento com o telélé. Depois, acabou-se o repertório. Antes das queixas começarem, mostrámos sinais de vir embora. «Já vão...» disse, com a sua tradicional expressão triste. É sempre pouco o tempo para quem recebe visitas. Despedi-mo-nos. Voltaremos um dia destes, ficou a promessa, entretanto vamos falando pelo telefone.
Enquanto descíamos, eu vinha muda. Guardei o nariz na mala. Pensei que os outros companheiros estariam decerto no mesmo lugar e com as mesmas expressões de um grande vazio no olhar. Não adiantava saudá-los com a voz. Mas como não conseguiria passar por eles sem os ver, que tal um adeus com a mão e um sorriso? Vi três bracitos erguerem-se e as mãos esticarem-se em sinal de resposta. Para eles, redobrei o sorriso e abanei mais a mão, num adeus que eles reconheceram. Mas não retribuíram sorrisos.
É a vida! É o nosso futuro, se quisermos viver muito tempo, para lá do nosso tempo.
Será?

4 comentários:

Pink disse...

Olá "tia",
foi comovente ler este texto.
É...a maior parte das pessoas quando chega a essa idade é inevitável o que lhes espera.
Claro que não devo ter a sorte de chegar aos 90 anos...mas quando a cotice e o caruncho chegarem, irei (se viver até lá)para uma dessas casas de repouso ou lar.
Achei graça ter levado o tal nariz d palhaço. Afinal gosta do Carnaval!
bjs d pink!

Paula Santa Cruz disse...

Olá Guida,
O seu texto tocou-me, infelizmente é o que nos espera, se chegarmos lá. É muito triste se sentir rejeitado, principalmente quando chegamos a velhos, porque muitos deles não recebem visitas das suas familias. O que vale é o pessoal que trabalha nos lares, para muitos, esses é que são a sua familia. Sei de algumas histórias porque a minha irmã trabalha num e conta-me por vezes. Quando se afeiçoam a algum utente e este "parte" também custa-lhes um bocado.
Mas é assim a vida!
Bjs
Paula

Guidinha Pinto disse...

Pink, muito obrigada pelo seu comentário.
Beijo da Tia :)

Guidinha Pinto disse...

Paula, agradeço o seu comentário.
A vida não tem de ser assim ... temos de fazer algo para a mudar.
Beijo