Olhão: uma visita que vale a pena

Dia primeiro de Junho. Depois das comprinhas arrumadas, mais umas moedas no parquímetro e encaminhámo-nos para o Jardim situado na mesma Avenida, a fazer tempo para o almoço. Muito bem cuidado, oferece sombras muito agradáveis aos visitantes, em manhã de termómetro a rondar os trinta. Como quase sempre, os melhores acentos - em frente à Ria - estão ocupados por homens a maior parte reformados ou ainda pescadores nas horas vagas. Outros passam mas quase todos se conhecem e se cumprimentam. As suas conversas envolvem o tema pesca, o que foi pescado e os preços do dia. Uns lá se levantam e despedem-se. Alguns ficam mais um pouco. Quanto a nós, é preciso é paciência - estamos em férias - e um banco vagará mais cedo ou mais tarde. Clico com o telélé o que gosto. Tal como desta vez, um banco de jardim vagou. Debaixo de uma árvore, só com o sol a bater na pontinha. Sentámo-nos, já com os pés um pouco doridos, a olhar aquela beleza azul leitosa que se estende até se confundir com o céu. A meu lado, pelo canto do olho, reparei que se ficou um homem, sentado em cadeira de rodas. Olhava a Ria, com olhar perdido em pensamentos. Disse-lhe bom dia. Ele parou de pensar, olhou-me e retribuiu o cumprimento, com um toque de dedos no boné. Pareceu-me uma pessoa de bem. Com um sorriso desviei o olhar e comecei a desenrolar o meu guia turístico para dizer qualquer coisa. Sogrinha ficou comigo enquanto que Marido foi dar uma volta. Isto é lindo, comecei. Vê aquela língua de areia e terra com casas em cima, lá ao fundo à esquerda? É a Ilha da Armona, já lá fomos uma vez, de barco, e tivemos de voltar para trás por causa do calor! Tal como hoje! respondeu ela, abanando-se. É muito comprida, vai até Fuseta. Continuei a apontar o indicador, a mostrar os meus conhecimentos. Segue-se uma larga saída para o Atlântico, por onde entra o peixinho que hoje vamos comer. Deus queira que haja sardinhas boas. É. Sardinhas gordas em início de Junho é difícil haverem, mas marcham, tal é a maluqueira que temos por este peixe. E continuei na descrição geográfica na Ria Formosa. A outra Ilha se lhe segue, é a do Farol. Mais uma saída de mar e a seguir é a Ilha da Culatra, a última à direita. Baixei o braço e suspirei. Deve ser bom viver aqui. Que tranquilidade e peixinho fresco todos os dias... Até que ouvimos: as senhoras são de cá? Não, somos de Lisboa, estamos em Tavira de férias, mas vir a Olhão é obrigatório, falei eu, sem interrupção. E foi o começo de uma conversa de meia horita. Apresentou-se como reformado, pescador, casado com uma senhora muito boa (comoveu-se), que tem um filho e uma filha que todos os dias de boas manhãs o vem colocar ali, para ele conviver com quem passava e sonhar a vida que teve. Quem teve uma vida activa e feliz, pode revivê-la muitas vezes sempre que fala dela, respondi. Ele anuiu. Falou da quantidade de peixe que antigamente se apanhava naquela Ria que sustentava muitas famílias e que desapareceu, dos artefactos marítimos, dos barcos utilizados na pesca que eram idênticos aos que estavam ancorados em frente. Cliquei. Não havia motores, só a força dos braços e do vento. Falou da sua incapacidade de se locomover pois nasceu com paralisia infantil, que passou muito pois não haviam suportes como o que ele agora tinha, mas que hoje se considerava um homem feliz. Pescou muito peixe. Quando apareceram as arcas congeladoras, estavam sempre cheias. Dava para a sustentar a família e para oferecer minha senhora. E perguntou: «Sabe como se deve congelar o peixe fresco? Tal e qual como se pesca!». E continuou: «Pesquei um sargo de 3 quilos há dois anos e ainda está congelado. Tenho de dizer à minha mulher para o descongelar». E sorria. E suspirava. E emocionava-se. Enquanto nos foi contando a sua estória. Nunca falou de doenças pessoais. Só de coisas boas. Perguntei-lhe a sua graça e autorização para o fotografar. Ele sorriu e fez duas poses. Chama-se Arnaldo Proença Coelho, tem 83 lindas primaveras, 4 AVC's e um enfarte.
Enquanto conversávamos, passaram alguns homens, uns mais novos, outros mais idosos, cumprimentavam Alnaldo e seguiam. Um deles, magro, alto, com boné na cabeça fez questão de ficar a falar, em pé. Ao sol, dada a aparente idade, ofereci-lhe o meu lugar para se sentar, arrastando os meus fundilhos e os de Sogrinha para a direita do banco, ficando com as pernas ao sol que queimava na hora do quase meio-dia. Deixem-se estar coisa e tal, mas sentou-se. Eu e Sogrinha, aproveitámos a vinda deste conversador e levantámo-nos, com intenção de nos despedirmos. Só que Arnaldo apresentou-nos ao novo colega de conversa afirmando: «Este senhor foi durante muitos anos o Chefe do Farol»! Vieram as apresentações, um desenrolar de estória bem mais curta de vida, dado que eu já não a alimentavamos com perguntas dada a hora. A culpa foi do sol que queimava as nossas costas e dos estômagos, que já davam sinais de querer alimento. Baconine era a sua graça. Baconine? repeti. Ele sorriu. «Sabe minha senhora, eu tenho 93 anos. Quando eu nasci, deu-se a Revolução Bolchevique (1917). O nome veio daí.» E sorriu. Pedi-lhe autorização para o clicar. Ele endireitou-se e perguntou-me se eu queria que ele tirasse o boné. Eu respondi que se o boné fazia parte do dia a dia dele, que não, que estava muito bem assim. Ele não o tirou. E cliquei o meio-sorriso oferecido.
Despedimo-nos até para o ano. Já no meio do jardim, em direcção ao Restaurante o Bote (na mesma Avenida, lá mais para a frente), voltei-me e procurei com o olhar aqueles dois Senhores, com uma idade invejável mas com uma cabecinha de se lhe tirar o chapéu. E lá estavam, um voltado para o outro, quem sabe a falar de nós.
Vida feliz para vós dois, Arnaldo e Baconine, dois homens do mar e da cidade de Olhão.

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