Cão que ninguém viu, na descida para Ribeira D'Ilhas

Era aquele o animal sofredor. Porte médio, novinho ainda. Magérrimo, com os ossos colados à pele. Olhava e gania. Gritos caninos que feriam não os tímpanos, mas o coração. Mais um animal abandonado, procurando vestígios do seu dono. Cheirava o chão pisado e fugia de todas as pessoas que se aproximavam das escadas para a praia. Descia os degraus à frente de todos e encostava-se às ervas, com medo. Depois voltava a subir, a olhar e a uivar. Tem fome, concordámos. Marido foi ao carro buscar pão e água. Se realmente fosse fome, ele comeria. Abaixámo-nos, para ficarmos à sua altura e Marido partiu o pão em pedaços que eu molhei com água. Foi impossível a aproximação. Chamámos por ele e mandámos, pedaço a pedaço. Ele vinha, de cauda entre as pernas, meio agachado. Pegava o pedaço de pão que mastigava pouco e engolia de seguida. Olhava-nos a pedir mais, entre latidos. Para além de tudo tinha fome. Essa necessidade nós pudemos mitigar, um pouco. As pessoas que passavam por nós - surfers meio vestidos, tatuados, simples visitantes do local - contornavam-no, evitavam um olhar. Nem um comentário. Nem um gesto de solidariedade. É como se nada ali estivesse a sofrer. O fito era a praia, o interesse pessoal nas ondas a garantir sucesso, a diversão, as férias. Tanta gente que passou naqueles 15 minutos que ali permanecemos. Imperturbáveis.
O chão inclinado não aceitava um recipiente com água. Tombava e entornava logo. Não podíamos fazer mais nada. Não conseguimos continuar ali. E o cão abandonado lá ficou. A subir e a descer os degraus. A olhar as pessoas. A ganir. À espera do dono que o abandonou. À espera.

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