Li há tempos

O lugar do amor é sempre um lugar estranho. E o lugar donde nos surge, pela primeira vez, a descoberta e o amor pelas palavras é, quase sempre, ainda mais estranho e incompreensível.


Em que momento, em que história, em que frase, os sons das palavras tomaram conta de nós? Quando foi que começámos a entender a música que as palavras têm por dentro? Devo confessar que, no meu caso, tudo se processou da maneira mais estranha e menos convencional. Passei a infância rodeada de tias velhas, entre paredes de casarões com enormes corredores que rangiam pela noite dentro, sob os passos cadenciados da tia Clara, que sofria de insónias. Sempre me lembro de haver em casa alguém doente. Muito doente. Gravemente doente. Moribundo. Morto. E então achei que não havia palavra mais bonita e mais doce do que a palavra *MORIBUNDO*. Repetia-a muitas vezes, *mo-ri-bun-do*, destacando bem as suas sílabas mas sem saber o seu significado, ou não me importando muito com ele. Para mim, as palavras sempre tiveram vida própria – para lá de todos os seus possíveis significados.
Naquele tempo, há quase sessenta anos, as pessoas tinham muito medo dos hospitais, e era uma vergonha deixar que algum parente da província lá morresse. Era como se o tivéssemos largado, abandonado a meio do caminho, como nas histórias que à noite nos contavam. Por isso, assim que algum adoecia com gravidade, logo o traziam para nossa casa. Então, era um corrupio de médicos e enfermeiros, e a tia Clara a dar ordens a toda a gente, e a tratar de tudo – e apareciam então palavras lindíssimas como *MERCÚRIO*, *TEMPERATURA*, *ÁLCOOL*, *ÉTER* – palavras que se desfaziam na minha boca como frutos maduros.Depois um dia o tio morria e então as velhas tias desmanchavam a sala de jantar — e a mesa enorme, onde todos os dias almoçávamos e jantávamos, ficava empilhada a um canto nas suas muitas tábuas, enquanto o tio era trazido do quarto e metido num caixão, colocado mesmo a meio da sala de jantar. O tio transformava-se então no *FALECIDO*, palavra de que eu também gostava muito — mas nada, oh nada que se comparasse à maravilha do *TIOZINHO-QUE-DEUS-HAJA* com que o baptizavam alguns dias depois. (Durante muito tempo,*QUEDEUZAJA* foi uma palavra única na minha cabeça, com significado que me escapava, mas encaixada entre os sons mais bonitos que a língua me podia oferecer.) Vinha a seguir o *VELÓRIO*- palavra mágica, santo Deus!, com aquele *ó* muito aberto, muito prolongado, e em toda a sua força esdrúxula…— e o cheiro a álcool e a éter , entranhado nas paredes da nossa casa, começava a misturar-se com o perfume adocicado dos *CRISÂNTEMOS* e dos *LÍRIOS*—mais duas palavras para a minha colecção de maravilhas. Depois o caixão desaparecia pelas escadas abaixo, regressava a mesa, e nós voltávamos a
almoçar e a jantar no exacto lugar onde estivera o tio morto, e a vida continuava. E, durante muitos dias, as conversas giravam todas à volta da doença do morto – e os meus ouvidos captavam, e a minha boca repetia depois, no silêncio do meu quarto, sonoridades extraordinárias como *PNEUMONIA*, *SEPTICÉMIA*, *EMBOLIA* — terminando sempre com a mais bela de todas, a que a tia Clara repetia sempre, no fim do extenso rol das desgraças : *MARTÍRIO* — Foi um martírio – murmurava ela. E todos aqueles *ii* soavam como música dentro dos meus ouvidos. Repito: pode não ter sido a maneira mais convencional, mas foi aqui, no meio deste estranho cenário, que eu descobri a magia dos sons que constroem as palavras. Que constroem os sonhos.Crónica
Alice Vieira: TempoLivre, MAR 2009

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