Li em "diz-fruta", um blog

Agradece à tua mãe por ter morrido cedo e ao teu pai por nunca te ter amado.
Agradece a infância lá na aldeia onde te confundiam com o gado, chamavam-te burro e davam-te sopapos e papéis de rebuçados.
Agradece ao homem daquele camião vermelho que, sem te fazer grandes perguntas, trouxe-te de boleia para a cidade – quatro horas a ouvires falar de putas e a grade de cervejas lá atrás a desaparecer pela goela daquele Gulliver desdentado – a maior viagem da tua vida, até então.
Agradece ao teu pai por nunca ter querido saber de ti.
Tu na cidade grande. Aquilo eram luzes, eram carros, eram pessoas altas, eras tu no chão a levantares-te, eram prédios, eram barcos, eram mercearias com caixas de fruta à porta, e lá dentro havia rebuçados.
Agradece ao careca que te disse ó puto, se queres trabalhar não te chibes, e cá estás tu a ganhar uns trocos, a dormir no fundo escuro do armazém gelado, com um sorriso gaiato na cara suja porque sabes que, como na aldeia, o Verão também aqui há-de chegar e por esse tempo já terás crescido, já terás ganho umas notas valentes a descarregar caixas de peixe na lota, ou a fazer o que for preciso.
Cá não te chamam burro nem te dão papéis de rebuçados, aqui mal te vêem.
Agradece por mal te verem.
Agradece aos pescadores de gorros suados as moedas ao fim do dia, pisga-te daqui, puto, se a bófia te vê temos sarilho.
Não queres sarilhos.
Não queres voltar à aldeia.
Não queres sopapos nem desprezo.
Não és burro, não senhor.
Já cresceste mais, muito mais do que os rufias que te esmurravam o queixo.
E amanhã ou depois, todo matulão, vais entrar numa mercearia, comprar uma mão-cheia de rebuçados e guardar os papéis no bolso para te lembrares de esquecer o caminho da aldeia, não vá o gigante bêbedo do camião vermelho encontrar-te e querer levar-te de volta.
Agora dorme e agradece por ainda conseguires sorrir enquanto sonhas.

É desses sonhos que nascem os homens.