Casas vazias com estórias

Passagem para os serrados


Entrada para a casa antiga

Nesta área estava a manta sobre o mato...



Saí de casa, numa tarde muito quente deste último Setembro, de máquina pendurada ao pescoço. Vou para baixo ou subo? Cortei à esquerda, subi devagar a calçada íngreme de pedras brancas. Fui olhando as casas, algumas em ruínas, recordando quem lá viveu. Não andei muito e dei comigo aqui, neste local com estória, das minhas inúmeras passagens pela Cerdeira com a senhora minha Avó, mal começavam as férias de Verão. 
Está assim, com ar de abandono e de de ninguém por aqui passar há tempos, nem a caminho dos Serrados, agora por amanhar. 
Olhei à volta à procura de poiso, queria viajar no tempo. Resolvi ficar de pé, pois não estou só e não desejo de modo nenhum incomodar outras criaturas que sabemos gostam de aqui para sua casa. Espequei-me ao lado da figueira quase brava, que vem estendendo os seus ramos até às silvas que por sua vez já tentam entrar por baixo da porta encerrada. Casa adentro. Casa vazia de gente.
Dantes, lembro-me, esta casa era térrea, com as lojas para a rua e nas traseiras, ainda cá está, a  entrada. Um pé alto com pouca altura, assim permaneceu durante muitos anos. Até Ti'Águsta e Ti'António da quinta se irem ambos. É no sítio Pissarrinha. 
Puxei pela memória, fiz-me a miúda que fui a passar férias com a Avó Olinda, que gostava muito de se juntar a esta prima, a Ti'Águsta da quinta (era a da quinta por haver outra Águsta, a do Casimiro) para falarem, delas e dos outros. 
Lembro-me que se riam muito. Riam até às lágrimas. Dos temas, não, não me lembro. A este duo divertido, juntava-se por vezes a Ti Ana, uma mulher grande, mais redonda que a Avó Olinda, vestida de preto e com os cabelos brancos apanhados em carrapito. Não era prima, mas virava-se muito para estas bandas. Por vezes trazia a sobrinha Matilde, miúda da minha idade que hoje vive na Lousã e já é avó.
Há meio século atrás, não sei se alguém que me lê se lembra, colocavam mato nas ruas e à entrada das casas. Era uma maneira de manterem o piso seco e as casas menos sujas. É que depois, sempre passavam os bois e os rebanhos de cabras, largavam os seus «presentes» e era tudo reciclado para adubar as terras. Sorriu e penso mudámos assim tanto por aqui? Que o que se entende por saneamento básico, que é a atividade relacionada com o abastecimento de água potável, o manejo de água pluvial, a coleta e tratamento de esgotos, a limpeza urbana, o manejo de resíduos sólidos e o controle de pragas e qualquer tipo de agente patogénico, visando a saúde das comunidades, ainda hoje não se faz a sério. Existem por cada casa, as fossas, algumas séticas, outras encanadas para locais que nem vou escrever; a água das chuvas, leves ou intensas, desce as calçadas e arrasta os resíduos; o que sai das torneiras, é mal pago mas bem taxado, não engolido sem se ferver e há as fossas, que no querido mês de Agosto não aguentam o uso e derramam o seu conteúdo. Os lixos, apesar dos recipientes camarários, ainda salpicam os caminhos, deixados, mandados, despejados. De electricidade em casa, só há uma vintena de anos se usufrui. Cobertura de redes para viajar na Internet com o Magalhães :) ou o simples uso de telemóvel, népia. Em pleno Século XXI, no Portugal, país europeu aderente ao Euro. O nosso futuro está longe de ficar mais civilizado.
Mas andemos, na escritura da memória. Estava a recordar o mato fofo nas traseiras da casa, coberto com uma manta de trapo, sobre a qual nos sentávamos, já com o sol passado para poente da casa. Estava bem ali, depois do lanche, a olhar o céu, a brincar com caruma, com bichos de conta e com carreiros de formigas, às cinco pedrinhas (que me lembrei eu) porque era uma criança-neta com sua querida avó, era bem tratada, estava fresco e cheirava bem. 
Volto à casa e à sua dona, a modos de despedida. A porta sempre aberta quando eu dava a volta e aqui me têm. Lá de dentro, no escuro com cheiro de lenha a arder na cozinha, de broa e sardinha frita,  surgia uma mulher pequenina e franzina, bonita, com um lenço na cabeça, a limpar mãos ao avental e uma voz que ainda consigo lembrar, fina e arroucada da Ti'Águsta da quinta: «Ó minha querida, estás tão bonita hoje! Dá-me um beijinho...»
Lamento muito olhar para «isto». Foi uma casa de família - lá nasceram 5 raparigas e 1 rapaz, se não me falha a memória. A maioria multiplicou-se e procuraram outras moradas. Presentemente a casa da Ti 'Águsta da quinta é de quem a habita. É das silvas e de outras criaturas autóctones, não dos herdeiros, que não a habitam. Por isso deu-me vontade de contar esta estória, que eu protagonizei. Para deixar aqui.
O cheiro a figos e a amoras invadiu o meu atual espaço, trazido por uma aragem quente. Saudades delas, pensei, ao clicar as fotos. Muitas foram as horas que aqui me senti bem, eu, a única miúda guardada pelas três mulheres, que conversavam entre si e riam muito do que contavam. E que já se foram. Olinda, Augusta e Ana. Porque «quando se gosta da vida, gosta-se do passado, porque ele é o presente tal como sobreviveu na memória humana»*


Escrito em 30 e Setembro de 2011.


*Marguerite de Crayencour

Posted by Picasa

2 comentários:

Alberto Manuel Henriques Barata disse...

Cara Guidinha, ao ler a sua agradável prosa, afloraram à minha mente factos ocorridos há mais de 50 anos e pessoalmente vivenciados, então, como a Guidinha se refere a si própria, uma criancinha.
Todo esse espaço territorial por si descrito, vem de novo à frente dos meus olhos, visto que, naquela época, conseguia percorrer tal local de olhos fechados.
Quanto às personagens, que refere, também as conheci bem! E, ao contrário daquilo que afirma quando fala da Ti Ana, esta Senhora com personalidade forte e rija como o ferro, era irmã da Ti Augusta da quinta e também irmã da Ti Patrocínia, que se foi muito cedo, mãe do Casimiro, do Amílcar e da Matilde, referida pela Guidinha.
A Ti Ana foi casada com o Ti Afonso, que faleceu no meu primeiro dia de escola, 7 de Outubro de 1957, o qual era irmão do Ti Alberto, pai da Alda, casada com o Ti Carlos Henriques (Carlos da barroca) e da Maria Aurora, que foi casada com o saudoso Luís.
Por hoje fico por aqui, desejando à Guidinha e a todos os seus familiares a continuação de boas festas.

Guidinha Pinto disse...

Como não posso responder ao Alberto Barata neste sítio para que ele tenha conhecimento, enviei-lhe uma mensagem no FB. Fica o seu teor.

«Boa tarde Alberto Barata. Venho aqui por causa do comentário que deixou na «estória» que eu contei no meu blog. Levou algum tempo a encontrar uma resposta, pois como deve calcular, a maioria dos que sabem destas coisas dos primos e das primas, já se foram. Então é assim: Eu desconhecia que a Ti Ana era irmã da Ti'Águsta da quinta, assim como não tinha presente que ambas eram irmãs da Ti Patrocínia (que não conheci) mãe do Casimiro, do Amílcar e da Matilde. As três eram filhas da Ti Luisa da Póvoa. Esta, por sua vez era irmã da Ti Júlia do Sobral (Prima Júlia do Sobral que bem conheci porque morou em Lisboa e era visita da minha Avó Olinda), do Ti Francisco "Coxo" (que não conheci e foi o avô da minha prima Laura-a-pastora) e da Antónia, minha Bisavó materna, que nunca conheci também.
O Alberto Barata conheceu melhor a minha família, o que é natural, porque conviveu com ela e é um pouquinho mais antigo que eu.
Estou mais rica, porque primos digo eu que tenho muitos, mas há os a brincar e os de sangue e estes aumentarem. Quero, portanto, agradecer-lhe o comentário.
Tenha um boa ano.
Um abraço.»