Do pragmatismo das pragmáticas

Recebo, mensalmente, a Revista Tempo Livre. É muito interessante. Uma das páginas que procuro, assim que me disponho a lê-la, é a de Maria Alice Vila Fabião. Os artigos desta senhora encantam-me. Ensinam-me. Sinto-me mais informada. Aí está mais um. Sobre pragmatismo. Pelo sim pelo não, procurei o significado filosófico, pois eu penso ser pragmática, não fatalista portanto. «Os pragmatistas argumentam que se deve considerar como verdadeiro aquilo que mais contribui para o bem estar da humanidade em geral, tomando como referência o mais longo prazo possível.» (1)


«[...] Giram as estações e os dias, /giram os céus, rápidos ou lentos,/as fábulas errantes das nuvens,/de campos de jogos e campos de batalha /de instáveis nações de reflexos, /reinos de vento que dissipa o vento: nos dias serenos o espaço palpita,/os sons são corpos transparentes, /os ecos são visíveis, ouvem-se os silêncios./Manancial de presenças, o dia flui soberbo nas suas ficções.[...] Otavio Paz, Rememoración (Segundo Tablero), in: Pasado en Claro, 1974 Trad. M.A.V.F.

Eram ricos. Eram poderosos. Eram reis ou imperadores. Em quase todas as civilizações antigas, considerados detentores de um mandato divino na terra, com a missão de estabelecerem a justiça e a paz, o equilíbrio e a harmonia no mundo. Entre os Celtas, de cuja cultura ainda se encontram vestígios no nosso país, um bom rei (eleito pelos nobres, como qualquer primeiro-ministro actual) era aquele que assegurasse a prosperidade dos seus súbditos. Ele era apenas o distribuidor dos tributos e dos impostos que lhe eram confiados. Por seu lado, rei que lançasse impostos, retirando deles benefícios pessoais, sem, em troca, dar qualquer compensação ao contribuinte, era considerado um mau rei, em cujo reinado a terra, as plantas e os animais se tornariam estéreis. (Sei que não temos rei, mas há quem diga que este ano a terra está seca, que as árvores se negaram a dar fruto... Não. Ninguém me falou dos animais.) Na realidade, se eram ricos e poderosos, ainda que, aparentemente, jamais bons, eram também pragmáticos, não no sentido de "adeptos do pragmatismo", teoria filosófica do séc. XX, mas sim no comezinho sentido original de "prático", do grego "pragmatikós": quando as despesas excediam as receitas do reino, e as régias burras ficavam vazias de dobrões, cruzados ou maravedis, por exemplo, havia o recurso, ainda actual, de lançar novos impostos, que em Portugal podiam ter nomes tão apelativos como, entre outros, fossado, calúnia, anúduva, açougagem e alcavala, fossado, calúnia, anúduva, açougagem e alcavala, e que, à míngua de numerário, até ao séc. XV, eram frequentemente pagos em géneros (sobretudo em trigo e panos). Muito actual, também, era o recurso a empréstimos, tendo a nossa familiar locução "dívida pública" surgido, paradoxalmente, em Portugal nos séculos das especiarias da Índia, do ouro do Brasil - do apogeu do poderio político e económico português. Quase todos os monarcas europeus passaram, ao longo da História, por graves crises financeiras. Os reis portugueses não foram excepção. Curioso é o facto de, por vezes, essas crises financeiras serem suscitadas, ou, pelo menos, agravadas pela tendência para o novo-riquismo, para o luxo delirante, das elites sociais portuguesas das diversas épocas, de que não estava isenta a própria Casa Real. Incapazes de aumentar as receitas, os reis procuravam equilibrar a sua balança comercial, desequilibrada pelas importações de artigos de luxo do estrangeiro, mediante a contenção das despesas, do ruinoso despesismo incontrolável, o que faziam através de Pragmáticas, ou decretos reais, como a Pragmática contra o Luxo, de 1749, "em que se regula a moderação dos adornos, e se proíbe o luxo e o excesso dos trajes, carruagens, móveis e lutos, o uso de espadas a pessoas de baixa condição, e outros diversos abusos, que necessitavam de reforma". Esta Pragmática, que também se aplicava às colónias da época, estipulava, inclusive, o que os negros e mulatos deviam usar e impedindo-os de vestir do mesmo modo que os brancos. O seu incumprimento implicava pesadas sanções, que podiam ir da prisão a dois anos de degredo. Diante dos meus olhos sonolentos desfilam na madrugada modelos envoltos em metros e metros de sedas da Flandres e brocados de Itália, com rendas de Bruges, de bilros de Peniche e de Vila do Conde, pérolas do Oriente, pedrarias da Índia... Nas cabeleiras empoadas, fitas e plumas de Paris e, bem ocultas sob esse delírio sumptuário, nas leitosas coxas celulíticas à Rubens, uma liga de fio de ouro fino do Brasil, de cuja existência apenas sei, evidentemente, pela indiscreta Pragmática que a proíbe.»


Maria Alice Fabião

Fonte: Revista Tempo Livre. O Tempo e as palavras - Do pragmatismo das pragmáticas: Nov 2010; pág79

2 comentários:

Elvira disse...

Alô. Investiguei e verifiquei que o pragmatismo foi uma doutrina filosófica oriunda dos U.S.A.. Fundamenta-se na ideia de que a verdade do que se acredita é a realidade; transforma portanto essa verdade em realidade, como bem geral a longo prazo. Opõe-se assim, ao pluralismo e ao intelectualismo, em que a verdade ou realidade que é para uns não serve a outros. Engraçado portanto foi que essas normas ou leis que focas aqui tenham sido chamadas de pragmáticas, já que objectivamente, serviam às pessoas por elas atingidas. Gostei de ler o artigo e relembrei vagamente (por isso ivestiguei o significado de pragmatismo) as pragmáticas... vamos aprendendo algumas coisas e reaprendendo outras... Fica bem.
Beijos.

Guidinha Pinto disse...

Olá Elvira. Agradeço a tua visita e comentário.
Beijo