E eu escrevo, filho de Sakineh, Sajjad Ghaderzadeh.

Sinto não ter capacidade para escrever sobre temas tão importantes como este, como se fosse uma escritora. Não o sou, inata ou por profissão aprendida. Sinto apenas as coisas, boas ou más. Portanto, prefiro usar palavras doutros que sentem o que eu sinto e sabem escrever sobre elas. Por isso esta crónica de Maria Alice Fabião, com o título «Para continuar a inventar o amor».
[…] Em letras enormes do tamanho / do medo da solidão da angústia / um cartaz denuncia que um homem e uma mulher / se encontraram num bar de hotel / numa tarde de chuva / entre zunidos de conversa / e inventaram o amor com carácter de urgência / […] A rádio já falou a TV anuncia / iminente a captura A polícia dos costumes avisada / procura os dois amantes nos becos nas avenidas / Onde houver uma flor rubra e essencial / […] É preciso encontrá-los antes que seja tarde / Antes que o exemplo frutifique Antes / que a invenção do amor se processe em cadeia / […]
Daniel Filipe, in: A invenção do Amor e outros Poemas, Lisboa, 1961.

Há meses que, emoldurado num manto negro como o silêncio eterno do Nada sem futuro, o seu rosto macerado me persegue, bem em evidência, no topo da página do jornal “online” de leitura matinal obrigatória. Olho-a nos olhos, terrivelmente expressivos na paradoxal ausência de expressão. Com a inevitabilidade dos automatismos, todos os dias a imaginação lhe sobrepõe, surgido do abismo da memória, aquele outro rosto de mulher que, sobressaindo, na sua palidez, do roxo bordado a ouro do manto de veludo que o envolve, olhos erguidos para o céu, uma lágrima perene detida a meio-correr na face direita, lábios entreabertos numa súplica jamais formulada, encheu de mistério e angústia as missas dominicais da minha primeira infância. Como que a explicar a razão de tanto sofrimento, a dona daquele rosto apontava, com dedos delicados, para as sete espadas que, em leque, lhe trespassavam o coração que alguém lhe arrancara do peito. Nossa Senhora das Dores - Sakineh Ashtiani. Sakineh. Um rosto; um rosto e um nome. Rosto e nome, porém, de muitos rostos e de muitos nomes - de todas as passadas e futuras vítimas das modernas teocracias islâmicas fundamentalistas, de leis e punições demasiado cruéis, desumanas, cuja lembrança vergonhosa os povos ocidentais há muito gostariam de ver apagada da sua memória histórica. Sakineh. É evidente que Sakineh é culpada. Não talvez culpada de ter um gato preto – coisa que na Europa medieval lhe valeria uma condenação por prática de bruxaria. Não, talvez, culpada de ter um sinal no rosto, coisa que, nesse mesmo então, seria, para os bons cristãos, demonstração do seu relacionamento com o próprio Belzebu e justificaria a sua condenação a uma santa fogueira ou ao enfossamento, método específico para mulheres, já que enterrando-as vivas os executores não corriam o risco de atentar contra o pudor da condenada, como aconteceria num enforcamento prévio. Na realidade, muito provavelmente, Sakineh só não é culpada do “crime” de adultério de que é acusada pelos juízes, que, interpretando a Sharia ao arrepio dos ensinamentos do Corão e baseados na sua intuição pessoal, dispensaram os testemunhos de três homens e duas mulheres e a condenaram a ser morta por lapidação.
A culpa de Sakineh, como de, entre muitas outras, Bibi Sanubar e Mariam (grávidas), e da pequena Leila (13 anos), lapidada por ter sido violada por três adultos, não foi terem cometido adultério, mas sim terem nascido mulheres no Irão, na Nigéria, na Arábia Saudita, na Somália ou em qualquer um dos países em que, após a revolução islâmica (1979), passou a imperar a Sharia (lei islâmica), na sua versão mais dura e arbitrária. É verdade que o conceito de adultério difere, no Islão, bastante do dos nossos lexicógrafos ocidentais, para quem adultério é “a violação do dever recíproco de fidelidade entre casados”. Para o legislador islâmico, é absolutamente lícito ao homem viver com quatro mulheres - desde que casado com elas. Adultério é, para ele, qualquer relação, sobretudo da mulher, fora do casamento, e a sua punição é, no total desrespeito dos direitos humanos, a morte por LAPIDAÇÃO (do latim lapidatione - “acto de atirar pedras”), ou APEDREJAMENTO, frequentemente precedida de 80 ou 100 chicotadas, para “persuadir” da sua própria culpa o acusado mais inocente.
Sakineh espera: a nossa ajuda ou a humilhante e terrível morte por apedrejamento. O filho pede: “Escrevam. Salvem a minha mãe.”

In O Tempo e as palavras; Maria Alice Vila Fabião, OUT 2010, TempoLivre 63

Foto tirada daqui.

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