Vou guardar este texto, em papel. E colocá-lo aqui também.

“Crianças do infortúnio” – “os Restavecs”. Haiti – século XXI

Sem pais / as crianças do infortúnio / vagueiam / como estrelas solitárias / como fósforos acesos / como fogos de bengala / que ardem sem fim / como anjos caídos / sem casas / nem portas / nem janelas[…] / As crianças do infortúnio / vagueiam / semelhantes a flores do abismo [...] / alheias / ao iminente / ocaso da terra [...] /

Tarek William Saab (1), in: Los niños del infortunio, Memorias de la Misión Médica Cubana en Pakistán, Ed. Plaza, Havana, 2006 Trad. MAVF

O primeiro som a povoar-me o silêncio foi o do relógio. Uma vez mais, tinha-me esquecido da minha capacidade, ainda que ilusória, de sustar o tempo, fazendoparar o pêndulo de latão do velho relógio Jérémie Girod, que tinha contado todos os minutos do longo casamento de uma bisavó por afinidade. Com esse gesto, reiterado vezpor outra, pensava que detinha, se não o fluir do tempo-vida, pelo menos a consciência desse fluir, na fracção de segundo que me parecesse digna de nela me eternizar durante algum tempo – apenas durante algum tempo, que a ideia de uma eternidade verdadeiramente eterna sempre se me afigurou extremamente enfastiante.Uma vez mais, porém, tinha-me esquecido de o fazer. A primeira badalada das doze interrompeu-me a leitura; a última projectou-me de rompante para o novo ano, cuja chegada estava a ser celebrada lá fora, entre o raivar do temporal e ruidososrituais propiciatórios da passagem de ano. 2010 era o ano em que todas as expectativas do mundo iriam tornar-se realidade: a crise, a fome, a dor e, entre outras coisas, o CO2 iriam desaparecer; desaparecer iriam também todos os uantanamos e corredores da morte; os dias iriam amanhecer vestidos de riso, sem rostos perversosa povoar as esquinas e os gabinetes dos detentores dos poderes decisórios.Não obstante as tempestades de chuva, de vento e de neve,a Europa mantinha a esperança leibnitziana de, em 2010, vivermos, finalmente, no melhor dos mundos possíveis. No 12º dia, contudo, a notícia deflagra e atinge-nos como bomba de fragmentação: “Um terramoto destruiu Haiti”; “Haiti já não existe”; “Dezenas de milhar de pessoas estão sob os escombros”… Os focos do mundo estão assestados sobre o pequeno país, ou antes, sobre o cadáver do pequeno país que, sob o domínio francês, no séc. XVIII, chegou a ser a colónia mais próspera do Novo Mundo e actualmente é o país mais pobre de toda a América Latina.Observam-no. Dissecam-no. Fazem-lhe um “post mortem”. As imagens põem à prova a capacidade de imaginação de qualquer realizador de filmes de terror – deque não sou apreciadora. Evito-as. Uma paralisante intensidade do sentir impele-me ao silêncio mais absoluto. Aparentemente, tudo foi dito e redito, com grande profusão de palavras. Excepto…Mais do que as imagens, persegue-me a ideia dos órfãos do terramoto, das “crianças do infortúnio”, que sempre são elas as mais desprotegidas nestas catástrofes. Tarek Saab, refere-se às vítimas do terramoto que em 2005 assolou o Paquistão; eu pensoagora nas crianças do Haiti, e mais especificamente, naquelas de quem ninguém fala: nos 300 000 “Restavecs” ou “Restaveks”, sem estatuto oficialmente reconhecido como tal, que por eles escrevo, que, duplamente “crianças do infortúnio”, são eles quempõe as palavras nos meus dedos atónitos. Fruto da pobreza extrema reinante no país,reminiscência infantil de um antigo regime esclavagista, os “Restavecs” (designaçãoque só teria lugar num dicionário infernal), termo crioulo, do francês “reste avec”, “está com…”, são crianças enviadas pelos pais sem recursos para casa de alguém, a quem ficam a “pertencer”, na maior parte dos casos, como pequenos escravos, objectos sem valor. Podem não ter mais de cinco ou seis anos, que o seuregime de trabalho pesado será de sol-a-sol, a troco de alguma comida, de uma esteira para dormir e, não raramente, de violentos castigos corporais. [Vez por outra, um mais feliz tem acesso à educação ou foge ao sistema (2)]. Se do sexo feminino, além de escrava, é, frequentemente, escrava sexual dos membros masculinosda família. Se engravida, é posta na rua. É também entre os “Restavecs” haitianos que os vizinhos Dominicanos e os beneméritos americanos da rica Florida recrutam osseus objectos sexuais a preços de saldo. Haiti. Século XXI. Ano 2010. Com quem “ficarão” agora os “Restavecs” que sobreviveram e que já eram órfãos antes do terramoto?
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(1) Advogado, especialista em Direitos Humanos.Venezuela, 1963
(2) Ver: Jean-Robert Cadet, RESTAVEC, from Haitian child to Middle-class American, 1998
Maria Alice Vila Fabião in: FEV 2010 TempoLivre 79.

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