Limpeza étnica

A realidade da actualidade é suficientemente assustadora. A sua exploração nos noticiários é bem patente. Para quê repetirem cenas dos capítulos diários e anteriores, para preencher a necessidade mórbida dos espectadores pelo que é alheio e feio? Podemos nós ajudar a mudar alguma coisa? Ou somos meros espectadores? Quando na semana passada vi no pequeno ecran homens empunhando armas e aos tiros numa rua do meu País, pensei: é o princípio do fim. Este nosso povo multicultural, que os políticos retiram ds barracas, embaralham e distribuem por torres de andares e espaços comuns de convívio, deviam ao mesmo tempo transmitir-lhes que quem quer ter direitos, tem que cumprir deveres de cidadania. Eles não sabem com-viver com os outros. Vivem em clãs, ainda. Não vou escrever mais nada, porque o artigo de Mário Crespo, um dos meus jornalistas preferidos, tem as palavras correctas, que contam e resumem *A estória*.

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O homem, jovem, movimentava-se num desespero agitado entre um grupo de mulheres vestidas de negro que ululavam lamentos. *Perdi tudo!* *O que é que perdeu?* perguntou-lhe um repórter. *Entraram-me em casa, espatifaram tudo. Levaram o plasma, o DVD a aparelhagem...*Esta foi uma das esclarecedoras declarações dos auto desalojados da Quinta da Fonte. A imagem do absurdo em que a assistência social se tornou em Portugal fica clara quando é complementada com as informações do presidente da Câmara de Loures: uma elevadíssima percentagem da população do bairro recebe rendimento de inserção social e paga "quatro ou cinco euros de renda mensal" pelas habitações camarárias. Dias depois, noutra reportagem outro jovem adulto mostrava a sua casa vandalizada, apontando a sala de onde tinham levado a TV e os DVD. A seguir, transtornadíssimo, ia ao que tinha sido o quarto dos filhos dizendo que *até a TV e a playstation das crianças* lhe tinham roubado. Neste país, tão cheio de dificuldades para quem tem rendimentos declarados, dinheiro público não pode continuar a ser desviado para sustentar predadores profissionais dos fundos constituídos em boa fé para atender a situações excepcionais de carência. A culpa não é só de quem usufrui desses dinheiros. A principal responsabilidade destes desvios cai sobre os oportunismos políticos que à custa destas bizarras benesses, compraram votos de Norte a Sul. É inexplicável num país de economias domésticas esfrangalhadas por uma Euribor com freio nos dentes que há famílias que pagam *quatro ou cinco Euros de renda* à câmara de Loures e no fim do mês recebem o rendimento social de inserção que, se habilmente requerido por um grupo familiar de cinco ou seis pessoas, atinge quantias muito acima do ordenado mínimo. É inaceitável que estes beneficiários de tudo e mais alguma coisa ainda querem que os seus T2 e T3 a *quatro ou cinco euros mensais* lhes sejam dados em zonas *onde não haja pretos*. Não é o sistema em Portugal que marginaliza comunidades. O sistema é que se tem vindo a alhear da realidade e da decência e agora é confrontado por elas em plena rua com manifestações de índole intoleravelmente racista e saraivadas de balas de grande calibre disparadas com impunidade. O país inteiro viu uma dezena de homens armados a fazer fogo na via pública. Não foram detidos embora sejam facilmente identificáveis. Pelo contrário. Do silêncio cúmplice do grupo de marginais sai eloquente uma mensagem de ameaça de contorno criminoso - ou nos dão uma zona etnicamente limpa ou matamos. A resposta do Estado veio numa patética distribuição de flores a cabecilhas de gangs de traficantes e auto denominados representantes comunitários, entre os sorrisos da resignação embaraçada dos responsáveis autárquicos e do governo civil. Cá fora, no terreno, o único elemento que ainda nos separa da barbárie e da anarquia mantém na Quinta da Fonte uma guarda de 24 horas por dia com metralhadoras e coletes à prova de bala. Provavelmente, enquanto arriscam a vida neste parque temático de incongruências sócio-políticas, os defensores do que nos resta de ordem pensam que ganham menos que um desses agregados familiares de profissionais da extorsão e que o ordenado da PSP deste mês de Julho se vai ressentir outra vez da subida da Euribor.

Mário Crespo - Limpeza étnica; 2008-07-21, in Jornal de Notícias

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